Por Alex Falcão
Eu nunca tentei entendê-la. Nunca me preocupei com isso. O mais importante foi que, sim, eu a conheci. No apartamento 215, ela entrava apressada às 7 da manhã. Nos segundos em que sua porta ficava aberta, eu tinha a imagem do seu lar florido e colorido, talvez algo que ela quisesse encontrar ao voltar para casa.
Nas caminhadas pela rua Augusta em busca de qualquer boteco, não foram poucas as vezes em que a vi perto de alguma esquina, produzida em meio a tantas pessoas que buscavam da mais simples diversão, ou um gole de cerveja, a noites de fúria, interpretando uma personagem da mais pobre estirpe.
Juro que guardei o segredo. Sabia o que se passava na vida daquela moça de pele branca com visual hippie, cabelos longos cobrindo as costas, bolsa de alça cruzada ao peito e que não hesitava em chegar à roda para dividir o vinho nosso de cada dia, jogar conversa fora e participar da roda de violão.
Camila era a menina que sempre estava de passagem, gostava de conversar, compartilhar a alegria com os demais, mas nunca por muito tempo. Talvez para não apertar demais os laços, aquele carinho que prende sem folga e não nos deixa escapar uns dos outros. Talvez Camila só quisesse se alimentar do nosso riso, uma dose de alegria naquela vida de cão solitária e desumana da noite, da venda diária do corpo e da perda eterna da sua alma.
Nas conversas que rolavam à tarde, Camila sonhava. Queria voltar para sua Ubatuba onde nunca morou, mas onde, desde a primeira vez em que esteve, dizia ter encontrado seu verdadeiro lugar. Camila sempre nos carregava em seus sonhos. Tínhamos 18, 19 anos, e Camila, 27. Falava das coisas que não viveu, da sua futura casa na beira do mar e das redes que teríamos para dormir quando fôssemos visitá-la.
Mesmo com a sua presença constante, mas passageira pela galera, às vezes ficávamos dias sem vê-la. Quando andava com o passo rápido, óculos escuros, sem dizer um oi, eu tentava imaginar o peso que carregava sobre os ombros ou as marcas nos olhos que tentava esconder. Nesses dias, o corredor de acesso ao elevador onde ficávamos por horas conversando era gigantesco para Camila. Tinha que nos mostrar a personagem que era, totalmente distante de quem queria ser, uma contradição feita de sonhos e pesadelos.
Num sábado de manhã, Grace me ligou pedindo pra descer e ir ao apartamento de Camila. Da imagem que eu tinha na memória, só restavam as flores, o cheiro de incenso na sala e as paredes coloridas do seu lar. Ela estava lá: deitada, com marcas pelo corpo, sangue na boca e um olhar perdido, sentindo-se culpada pela própria existência. Não queria a nossa ajuda, a nossa compaixão. Na verdade, não queria que a víssemos naquele estado.
Camila contou a Grace que apanhou de um grupo de rapazes ao sair do trabalho, em um restaurante próximo à Vila Mariana onde trabalhava como garçonete. Por não ter a quem pedir ajuda, Camila não quis ir à delegacia, não quis contar detalhes. Só queria ficar sozinha.
Enquanto Grace foi à farmácia, ficamos a sós por meia hora. Não tive coragem de me abrir com ela, de contar que sabia das suas noites perdidas e da solidão e decepção que sentia ao voltar pra casa. Quando ela estava na roda da galera, por algumas horas, ela fazia parte de tudo aquilo, mas vendo-a naquele estado, no sofá, vi a real distância do mundo em que vivíamos.
Depois daquele sábado nunca mais a vi no prédio da rua Marques de Paranaguá, nº 96. Passei a imaginar para onde foi Camila, se ainda alimentava o seu sonho de mar, se passava as noites em claro agradando a pobres miseráveis, se ainda dormia em porta de metrô ou negociava a carona de volta pra casa. Durante algum tempo pensei em tudo que cercava o seu mundo.
Então, na tarde de um dia qualquer, ao lado da floricultura da Praça João Mendes, dividindo ponto com mais quatro mulheres, lá estava Camila. Interpretando a sua eterna personagem sob a luz do dia, sem aplausos, sem admiração. Não deixei que ela me visse, ela não precisava dessa lembrança de quem somos e de quem gostaríamos de ser. O seu olhar perdido ainda era o mesmo, mas Camila continuava cercada de flores.