Trabalho no Round Midnight, um bar no Arouche, freqüentado por todo tipo de gente, de gringos do Bourbon Hotel a estudantes de arte. Uma espécie de Café de Fleur’s paulistano.
Sou um estudioso. Meu objeto de estudo são as pessoas. Alimento-me de suas histórias, suas expressões, seus desejos, seus movimentos. Sinto com elas o gosto de cada gota dos drinques que lhes sirvo. Por isso vim trabalhar no Midnight, e aqui estou há tantos anos.
Dentre os tipos de pessoas, um dos que mais me fascina são as Damas da Noite. Talvez seja meu fraco por mulheres, misturado a meu fraco pela decadência humana. Afinal, nenhuma mulher é mais mulher, e nenhum humano é mais humano – ou decadente – do que elas.
Adelaide é um exemplar interessante de desse tipo de material humano, e uma das freqüentadoras do bar que mais me ocupa. Diz ter estar na segunda metade dos quarenta, mas desconfio que tenha bem menos, e o tempo cronológico não tenha acompanhado a degradação do corpo proveniente da vida pouco ortodoxa que leva.
Às vezes tirava da bolsa um batom e um espelho, e ficava um tempo indefinível olhando para eles, numa melancolia diáfana. Era sempre um batom de péssima qualidade, dava uma impressão viscosa, artificial aos lábios. Não que lhe faltasse dinheiro para comprar uma marca melhor, isso ela tinha, mas não valia a pena. Não para gastar nos lábios de completos estranhos.
Adelaide chegava a sentir-se culpada pelo destino que dava a sua maquiagem. Era doloroso se arrumar, caprichar no rímel e no perfume para misturá-los ao suor dos vagabundos e cretinos que alugavam seu corpo sem sequer reparar no meticuloso tratamento. Chegava a gastar mais tempo se arrumando do que estragando o visual na cama.
Contemplar as rugas contrastantes com a maquiagem lhe dava certo prazer sádico. Seu gosto apurado para moda julgava criticamente as roupas que usava. O corpete vermelho, a saia de vinil, as botas de cano alto, a pintura exagerada. Estava vulgar, espalhafatosa, ridícula. Era um palhaço para divertir adultos. Uma atriz. Encenava uma releitura de si mesma, caricatura cruel de um tempo e um lugar áridos, escrita por mãos ébrias e vacilantes. Simplesmente perfeita.
Quando a conheci, ela trabalhava numa casa luxuosa, vestia-se bem, era sorridente, apesar de o entusiasmo transbordar cocaína. Era estudante de letras e se prostituía para pagar a faculdade. Ganhava bem seus dez ou doze mil reais por mês. Adotou o nome de Lucíola, numa brincadeira literária que certamente faria José de Alencar se revirar no túmulo. Vinha todas as manhãs, quando eu abria o bar, e tomava uma vodca Absolut. Os anos vieram, ela não se formou e passou a idade limite da Casa de Diversões Alternativas. Teve que se transferir para um prostíbulo menor, mas continuava vindo aqui. Sentia-se num ambiente menos hostil.
Começou a fazer programa em seu apartamento, mas precisou aderir a um cafetão para se proteger,depois que um cliente arrancou-lhe três dentes e deixou-lhe quase morta, porque não quis pagar o serviço. O cafetão ficou cada vez mais ganancioso e Adelaide teve que se mudar para um apartamento menor. Os clientes fiéis levaram sua fidelidade a garotas mais novas, de carnes mais firmes, e Lucíola começou a figurar nas ruas. Não parecia se importar, enxergava certo charme no ar noturno. Flertar com desavisados, seduzir pais de família e fazê-los perder o horário de voltar pra casa massageava seu ego.
Noite após noite, a cidade ficava mais violenta, e os cafetões se diversificaram. Agora, pagava aos policiais para poder trabalhar. Conforme a distribuição da renda se pulverizava, a vodca foi ficando mais barata e mais freqüente. A clientela também perdeu o glamour, e Lucíola tornou-se uma Geni urbana. “O seu corpo é dos errantes, dos cegos, dos retirantes, é de quem não tem mais nada”, diria Chico, ao ver a triste figura em que Lucíola converteu Adelaide.
Hoje, Lucíola tomou o golpe final. Antes podia suportar a idéia da própria ruína por sua ilusão romântica, sua personagem noturna, dividida maniqueísticamente. A Noite, porém, outrora uma mãe compreensiva que reconfortava os excluídos e encobria as vergonhas, expulsou suas filhas do lar. A máscara noturna se foi com a violência, e Lucíola, senhora de quarenta e tantos anos, varizes e olheiras profundas, recosta-se em um poste na Praça da República, exposta ao cruel olho de Apolo, para flertar com os transeuntes, impossibilitada de diferenciar entre os habituais desiludidos e os verdugos da moralidade. Corre o risco de se encontrar a qualquer momento com suas antigas colegas de universidade, com suas vizinhas beatas, com o senhorio da quitinete que habita.
Se antes a mascara noturna poderia preencher as manchas na pele, as covas fundas sob os olhos, a flacidez das coxas cansadas, a luz diurna é uma lente de aumento zombeteira. O charme Noir dá lugar a uma realidade humilhante. Adelaide está velha, uma idade física que avança sobre o tempo corrido. Anos multiplicados por dias e noites de festas, de dores, de um pesadelo que se disfarçava de ilusão. Adelaide está velha, e Lucíola não mais pode enganá-la.
A falsa euforia foi finalmente trocada pela vergonha, e agora ela passa aqui no final do novo expediente, às oito da noite. Gasta praticamente tudo o que ganha com cachaça, em um boteco três quarteirões abaixo daqui, e depois vêm tomar uma vodca, como antigamente. Demora-se por horas na mesa. O patrão jamais cogitou pedir que ela se vá. Tornou-se peça histórica do bar. Foi-se o dinheiro, ficou a piedade alheia. Não sei o que a embriaga mais, se a vodca ou a comiseração.
Na noite passada, Adelaide trouxe para a mesa um livro, e passou a noite toda em cima dele, com um pote de Liquid Paper e uma esferográfica preta. Quando se foi, me deixou o volume de presente. É um exemplar de Fausto, de Goethe. Em cada página, por cima do nome de Fausto, ela escreveu Adelaide. Em cima de Mefistófeles, Lucíola.
Desconfio que não a verei novamente.
Plínio Zúnica