São Paulo marginal

Por Fernando Thadeu

Era para ser vinte caixas. Não acreditei que caberiam todas no carro, mas pela persistência dos sabedores de entregas acabei influenciado. O carro parecia mais um avião, com aquele bico levantado e a traseira quase lambendo o chão, lotado de caixas de folhas sulfite.

Por onde vamos e que horas são, foram questões que vieram na minha cabeça quando saímos a caminho de nossa entrega. Estávamos na zona oeste e a entrega seria na zona sul. Saber se o horário é propício e se existe algum caminho para fugir delas é essencial. Paulistano de carteirinha sabe que para atravessar a cidade precisa pegar as famosas marginais Pinheiros ou Tietê, um martírio para sanidade humana, pois o nome marginais, significa trânsito e stress. Seguiríamos pela Marginal Pinheiros até o fim, isto é, trânsito e stress até o final. Precisávamos fugir de comandos policias também, afinal polícia gosta de parar aviões quando estão fora dos aeroportos.

A pessoa que inventou o cigarro com certeza estava em uma das duas marginais em São Paulo. Só assim para enfrentá-las.

Logo na chegada na marginal, vimos as pontes que dão acesso a ela forrada de caminhões e carros. Pessoas falando no celular, outras cigarreando como nós, outras discutindo, outras dormindo, e outras querendo passar por cima do mar de veículos. Tudo parado, agradecemos ao inventor do cigarro e começamos o martírio. Depois do mesmo cd tocar três vezes conseguimos passar o carro velho que parava uma das maiores cidades do Mundo.

O caminho a seguir é tranqüilo, cheio de visões abstratas. Arranhacéus sendo construídos, outros mostrando toda sua imponência, favelas, mais carros e todo tipo de construção bem organizada, como trens ao lado de rio, casas nos morros, fios elétricos cobrindo o céu aberto para todos os lados e pontes caindo aos pedaços.

Os motoristas são os personagens de viagens como essa. Vemos desde moleques dirigindo carros velhos e carros novos nunca vistos dirigidos por gente velha. Fechadas, caminhões esbravejando fumaça, mudanças de faixa, típica de gente perdida, carros voltando de ré, para um acerto de caminho tudo que toda cidade grande tem, ou melhor que em São Paulo tem. Não é possível acreditar que isso existe em outras cidades. Crescer assim desorganizadamente não é pra qualquer um. São anos de experiência, e isso São Paulo tem de sobra. São 458 anos. São muitos anos, melhoras são quase impossíveis, e quando tentam causam mais complicações. Somos obrigados a enfrentar essa maratona para servir nossos clientes. Chegar, descarregar e receber nos faz esquecer que São Paulo difícil é essa de se sustentar. Na mesma medida de oportunidades que ela oferece, encontramos obstáculos. Tudo na mesma quantidade, na mesma proporção e com a mesma intenção.

Crítica ao texto “São Paulo marginal”

Por Marcelo Fabri

O texto de Fernando Thadeu, “São Paulo marginal”, é o relato do simples trajeto de um automóvel de um ponto a outro da cidade, para uma entrega de mercadorias, porém, recheado de situações e cenários tipicamente paulistanos. Com isso, Thadeu fica dentro do tema sugerido nessa etapa do projeto: “Isso só acontece em São Paulo”. Não faltaram congestionamentos, automóveis em mau estado, paisagens contrastantes, compulsão por cigarros e a resignação de ter uma vidinha “mais ou menos” na metrópole cinza. Thadeu não usa clichês – tão disponíveis e fáceis – para falar de São Paulo, mas envereda pelo tema de forma corriqueira, o que torna a leitura agradável e divertida.

Thadeu acerta no título ao intrigar o leitor com a polissemia da palavra marginal, às vezes adjetivo; às vezes, substantivo. Deixa a dúvida, antes da leitura, se falará de um lado da cidade mais underground ou das vias expressas que cicatrizam a cidade. E quando fala da marginal Pinheiros, vai fundo, norteia o leitor de sua posição como motorista e observador.

Alguns trechos revelam ironias bem originais do autor, como em “polícia gosta de parar aviões quando estão fora dos aeroportos” quando se refere ao carro lotado e rebaixado; ou em “moleques dirigindo carros velhos e carros novos nunca vistos dirigidos por gente velha” citando motoristas vizinhos na Marginal Pinheiros. O sorriso do leitor aparece espontaneamente nesses trechos. Pequeno aperitivo da leitura, mas fundamental à sua digestão e coesão.

O que incomoda é o final do texto. Ele perde o ritmo. Trazia aquela observação aguda, mas divertida e resignada, para se tornar dissertativa e rebelde. Muda o tempo da narrativa para segunda pessoa com verbos que incluem leitores, passageiros do trânsito e o próprio autor. A falta de esperança dava a tônica do texto, trocada no final por um pequeno lamento. Se esse lamento tivesse um pouquinho mais de humor, talvez mantivesse o ritmo.

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7 Comentários em “São Paulo marginal”

  1. Anonymous Says:

    Fernando, fico feliz ao ler seus textos porque sei da dimensão que eles têm para você. A cada dia vc. supera suas dificuldades, mas sabe que ainda tem muito a escrever. Os caminhos pelos quais tenta desenvolver seus temas são sempre bons, no entanto vc. precisa buscar a precisão do detalhe, para que o texto não fique prolixo, e o específico de cada termo. Como fazer isso ? Lendo, meu caro, lendo.Siga em frente, Thadeu, a estrada é sua, vc. só precisa acertar o ritmo. Beijos

  2. Marco Aurélio Says:

    Não concordo com a Tia Zicca. Acho que foi o melhor texto dessa fornada, apesar de escrito por um lixão feito você. Gosto da qualidade visual dos seus textos, das imagens que se sucedem umas às outras, do ritmo. De todos nós, você é o mais próximo de ter um estilo próprio.

    Pena que gosta de pipi…

  3. Zúnica Says:

    gostei do texto pela verossimilhança. A cena que você descreveu é algo típico, real, cotidiano, então não é difícil se sentir dentro do texto, ver o que você viu, saber exatamente qual a sensação de ficar preso num congestionamento. No entanto, faltou um pouco de tempero.

    Podia ser humor, podia ser sarcasmo, podia ser lirismo, podia ser preciosismo lingüistico, enfim. Faltou uma pitadinha daquilo que torna o texto sobre a nossa vida mias saboroso do que a nossa vida.

    Tem um pouco de repetição também. POr exemplo, você cita duas vezes seguidas “a pessoa que inventou o cigarro”. A idía é realmente interessante, mas a repetição tira o brilho.

    Mas, no final, é um texto sutil, leve, gostoso de ler.


  4. Legal, cara! Um enredo simples, de uma entrega de produtos, tornou-se interessante pelos detalhes. De um ponto a outro, você descreveu essa parte da cidade que tanta gente usa e talvez não repare nesse seu ponto de vista.
    E agora entendo sua insistência em criticar os títulos dos nossos textos: “São Paulo marginal” é um puta título!

  5. Carlinhos Says:

    Casa nova, é? Bacana, pois bem, fantástica a tua descrição das marginais paulistanas. Quem nunca ficou “ilhado” por carros em uma delas? Que levantem a mão. Se é que alguém vai levantar. Coragem tua que teve que atravessar a cidade para fazer uma entrega. Ossos do ofício. E já vou avisando: Dizem que vai ser construido um estádio do poderoso timão em uma das marginais. Se isso acontecer, hahahahaha…Você vai ter muitos detalhes pitorescos para escrever em teus textos. Dois representantes da cidade em destaque: Timão x Marginal. Dá-lhe paulicéia doida, desvairada e fumacenta!!! Amanos vocês…VAleu…

  6. Vinícius Says:

    Cara, já disse milhões de vezes que sou seu fã e não tenho medo de repetir.
    Essa sua forma contundente de escrever me agrada muito. Todos os seus textos têm personalidade, têm força de argumento.
    Quem acompanha sua jornada desde o princípio sabe que está evoluindo muito bem.
    Keep on rockin’….
    Abraço.

  7. alexfalcao23 Says:

    ok


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