No Ceará não tem disso não

Por Alex Falcão

Peço licença para citar o rei do baião, mas no Ceará não tem disso não.
Um dos patrimônios de São Paulo é a pressa do cidadão. Com o seu passo acelerado, forte e marcado como quem vive sempre em atraso com a vida.

Vida que passa no trânsito da Marginal, nas filas, no semáforo, na manobra do caminhão. O minuto roubado que buscamos a todo o momento traze-lo de volta.

Se nos perguntássemos o motivo da pressa, a resposta seria convincente?

Justificaríamos a buzina ao carro da frente, a reclamação da fila no supermercado? São Paulo assiste seu povo lutar por esse sopro de tempo a todo instante. Sem perceber, viramos escravos do nosso relógio, cada vez mais alinhado com um atraso constante. Um atraso pra não sei o quê.

A busca pelo tempo perdido se transforma em um perde e ganha diário.

Passamos a contabilizar os 10 minutos perdidos na estação Barra Funda, os 5 minutos recuperados no caixa rápido, os 10 minutos do carro enguiçado, do motoboy atropelado na Rebouças, do sinal fechado. Tudo!

Nessa correria sem fim, tatuada em nossa pele, São Paulo passa a ser uma cidade em movimento. Apreciada somente em movimento, passamos a olhar seus parques de relance, sem um minuto de devoção. Passamos a olhar suas estátuas como vultos, confundidos com qualquer um na rua. Qualquer anônimo, sem nome, sem face, sem história.

Seus prédios são habitados por vizinhos que não se conhecem, que não tem tempo pra si, totalmente inversos as possibilidades que encontramos em cada pessoa. Uma leve decadência do bom dia. Meu pai também diz: “No Ceará não tem disso não”.

São Paulo vive em constante mutação para suprir a sua própria pressa.

Temos entregas pra tudo, supermercados 24 horas, motos malabaristas, ciclistas noturnos, rodízio de carros, faixas de ônibus, helicópteros, ambulâncias encurraladas.

São Paulo tem seu jeito, com ternura e união involuntária.
Quase nos abraçamos no vagão lotado da Sé, ouvimos a respiração um do outro no ônibus e na lotação. Sem querer ou escolher, foi desse jeito que a cidade nos uniu.

Ser diferente em São Paulo não necessita muito esforço. Não precisa mudar o penteado, falar outra língua, ter credo ou cor.
Sentimos-nos diferentes ao desacelerar o passo, deixando a correria de lado, esquecendo as horas, parando de acompanhar o vento. O Paulista escapa da sua cidade andando devagar, lentamente, vendo a cidade passar.

Crítica ao texto

Por Vinícius Peixoto

Na crônica “No Ceará não tem disso não”, Alex Falcão procura retratar a pressa e a compulsão do paulista pelo relógio. O tema “Isso só acontece em São Paulo” é tratado com leveza e em tom poético para reforçar a idéia de que, para ser diferente em São Paulo, é preciso “desacelerar”. A tônica desse texto é a maneira como o autor trabalha vários clichês usados para citar São Paulo, como a pressa, as filas, a solidão e o movimento da cidade.. Alex usa sua condição de filho de migrante para comparar São Paulo ao Ceará. E é nesse momento que introduz o leitor em sua criação, já que a maioria de nós descende de nordestinos. O autor não se aprofunda no tema proposto – o tempo, ou falta dele em si, é um aspecto muito complexo e abrangente – mas deixa claro o seu posicionamento de que precisamos viver com mais calma, sem a corrida diária para se chegar a lugar nenhum, além de tratar com muita clareza suas idéias.

Com uma sensibilidade ímpar, Alex consegue identificar em situações corriqueiras do dia-a-dia paulistano a nossa condição de reféns do relógio e da busca incessante por produção. Acreditamos ser mais produtivos quando conseguimos fazer mais coisas em menos tempo e, para mostrar como isso é bem específico, Falcão usa a frase de Luíz Gonzaga “Lá no Ceará não tem disso não”.

A linguagem de Alex Falcão não é rebuscada, nem erudita, mas é clara, concisa e agradável. A musicalidade que o autor imprime nos primeiros parágrafos ao criar rimas descompromissadas convida o leitor a contemplar a cidade sob o olhar calmo do nordestino.

Como leitor, posso dizer que o texto me agradou muito. Chamou a minha atenção e me manteve firme, lendo até o fim. Como crítico, diria que além de superficialidade do tratamento, o “tempo” como tema principal é muito “lugar comum”, não tem muita originalidade e está desgastado. Mas esses aspectos foram facilmente superados pela qualidade do texto. Com tanta capacidade de criação, estou ansioso para ver como Falcão se sai em outros gêneros literários. Pode dar muito certo!

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7 Comentários em “No Ceará não tem disso não”

  1. Romulo Says:

    Anomias à parte, eu não gosto do jeito que São Paulo nos une… é meio fedido.

    Excelente texto Falcão (não o do filme do Sly)!

    Esperto era Durkheim quando analisava os “fatos sociais” com olhos de expectador.

    Mas Rousseau também disse que: “somos apenas produtos do meio em que vivemos”.

    complicado?

    sim, mas no texto fica bem claro a posição de Alex refrerente à São Paulo.

    Como diria um filósofo motoboy: A cidade é um organismo, as ruas são veias, e os carros são os glóbulos brancos e vermelhos hahahah…

    coisa de Paulistano


  2. Bem vindo Falcão, gostei muito do texto e do tema escolhido. Achei que falar de São Paulo, nos deixou meio perdidos, pois são vários temas que podemos abordar, mas vc acabou escolhendo um que ninguém havia escolhido. O tempo.
    Sou um grande adimirador da cidade, e consegui ter todo esse meu apreço validado, graças a semana cultural criada pela secretária da cultura junto ao governo de SP. Nunca tinha visto a cidade com os olhos que vi naquele fim de semana. Os prédios, as praças, os teatros e estátuas, toda iluminação. Tudo diferente daqueles olhos que vagueiam durante o dia. Passamos por ela sem perceber sua beleza verdadeira. E foi lendo seu texto que me lembrei deste fato, pois meus pensamentos na época foram exatamente os mesmos.

  3. Carlinhos Says:

    Bacana essa “passeada” pela etnia paulistana. Realmente vivemos correndo atrás dos minutos perdidosa que nem nos damos conta de que não moramos sozinhos em um prédio de 10 andares. Semáforos. Buzinas. Ambulâncias e viaturas que usam as sirenes ao invés do “com licença”. As lotações e ônibus lotados. Eita São Paulo de miscigenação!!! Uma cidade que não tem raça, nem credo…Teu texto traz a tona os paulistanos por opção. Seus oxentes e vixes, tua baianidade nagô, sim, meu rei, cabra da peste, parceiro, truta meu. Muito bom ler São Paulo. É npois na fita, mano…

  4. mauricio Says:

    Cara parabéns… desenvolveu muito bem o texto e principalmente os pontos q escolheu pra ele… show d bola!

    suecesso!!!


  5. Bela lembrança. Não sei pra que tanta pressa. Eu gosto mesmo é de flanar por São Paulo. Não é o capital nem o lucro que me move nessa cidade. Quem me orienta é Baudelaire.


  6. Teu texto tem um ritmo, uma musicalidade afinadas com a velocidade da cidade. Mas o que faz com que se destaque de verdade é que possui aquele toque que diferencia a literatura do entretenimento: o fazer pensar.

    Teu texto nos coloca dentro da nossa rotina, do nosso próprio tempo. Afinal, quem é que nunca contabilizou os minutos no trânsito, não amaldiçoou o desgraçado que caiu no trilho do metrô e atrasou o embarque, não toma café em pé, assitindo o telejornal pra ver o boletim de trânsito?

    Sua crônica nos transporta pra o nosso dia-a-dia e faz com que nos olhemos com outros olhos, percebendo o ridículo da situação, mas sem culpa, com leveza. E, no final, dá vontade de tirar os sapatos, desacelerar, espreguiçar, fazer Tai Chi Chuan no quintal. Aquela sensação de sabedoria oriental, com chá e sinihos de fundo.

    Inspira… expira… inspira… expira…

    Parabéns, e seja muitíssimo bem vindo!

  7. Cristina Says:

    Lembrei de minha mãe falando da discussão que ela teve com nosso vizinho aposentado no banco. Ele reclamava incessantemente da fila que não andava até que minha mãe ficou de saco cheio e começou a perguntar para ele: “o senhor vai fazer almoço, assim como eu? o senhor tem filho e marido pra cuidar, assim como eu? o senhor tem que voltar para o trabalho correndo, assim como eu?” Ele não respondeu, mas acredito que, naquele momento, ele parou para se perguntar o porquê de tanta pressa.

    Talvez nós não saibamos o motivo porque não temos “tempo” para pensar nisso. Só temos tempo para pensar em apressar os carros da frente quando o semáforo abre, para reclamar do trânsito nas Marginais e para forçarmos a nossa entrada no metrô lotado porque “temos que chegar cedo em casa”.

    A cidade nos uniu? Fisicamente, sim. Mas, cada vez mais, vejo a desunião com relação a viver em comunidade. É só tentar pegar um metrô na Sé às 18 horas, por exemplo, para ver que a nossa pressa desmedida tem esmagado a nossa civilidade diariamente.


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