Fim de carreira

No começo, pareceu uma boa idéia.

“É mais seguro”, elas diziam. “Os clientes são melhores”, argumentavam. “A concorrência é menor”, lembravam. Não tinha como dar errado, então ele cedeu. Estava empolgado com a descoberta do novo nicho em um mercado tão antigo e saturado.

“Putas filhas da puta”, é o pensamento com sabor de genealogia bíblica que lhe ocupa a mente agora, enquanto caminha sob a luz dos postes na praça vazia. Nos bons tempos, a João Mendes era um jardim e todas as flores eram dele. Ele, Zelão, clássico agente do amor profissional, tinha uma carreira para se orgulhar. No começo, anos 70, ostentava uma vasta cabeleira afro, estolas de pele, calças boca-de-sino listradas e justas, sapatos de plataforma, tudo inspirado pelos pimps gringos. Daquela época, guardava apenas a unha crescida e pontiaguda do mindinho esquerdo e seu código de honra: proteger as meninas, orientá-las e ganhar sua vida com base no respeito mútuo. O frágil equilíbrio — ele, elas, os clientes, a polícia, as senhoras da sociedade — era mantido a muito custo. Então veio a idéia do novo turno de trabalho, e a receita degringolou.

Primeiro foi a revolução das estrias. As damas da noite não são “da noite” por acaso: a penumbra é sua aliada contra os estragos do tempo e das circunstâncias. Todos os gatos são pardos, todas as putas são belas. O cliente as encontra no escuro, no escuro caminham juntos até o hotel, num quartinho escuro consomem o ato rapidamente, e eis duas pessoas satisfeitas: o homem que aliviou a pressão, a mulher que prestou um serviço e recebeu seu pagamento. Equilíbrio, pensa Zelão agora, é o segredo de tudo. Mas durante o dia o equilíbrio se acaba: mais justas e brancas do que Deus, as calças transparecem celulites. Os tops mínimos favorecem os pneus e as cicatrizes de cesarianas. Um dia de atraso no retoque da tintura faz os cabelos brancos saltarem à vista de quem passa. Some-se a isso o perfil do homem moderno — um afeminado que deixou de gostar de mulher e passou a reparar em veadagens como estrias, celulite, culotes — e está formado o furdunço.

A primeira a reclamar foi Creuza, uma mulata já mais para os quarenta do que para os trinta. A cicatriz diagonal no colo é lembrança de uma navalhada precisa, aplicada como punição dez anos atrás. Zelão não se arrepende da navalhada: a crioula estava pedindo. Além do mais, largara a navalha no mesmo instante para levar a piranha até o hospital. Passou a noite segurando sua mão, enquanto ela chorava e pedia perdão. Ingrata. Ao notar que a luz do dia tornava impossível disfarçar a cicatriz, resolvera pedir, ou melhor, exigir uma reparação. Nos bons tempos, a reação imediata de Zelão seria aplicar outra navalhada e dar o assunto por encerrado. Mas os bons tempos já iam longe, então ele concordou em cortar sua comissão pela metade para bancar a cirurgia da moça. Um prejuízo danado, que Creuza tratou de multiplicar espalhando a história entre as colegas. Em pouco tempo, a principal atividade do cafetão era administrar os pedidos de lipoaspirações, peitos e beiços de silicone, apliques, depilações a laser, o diabo a quatro.

A cirurgia de miopia para Soraya foi a gota d’água. Um cliente preferencial, ela dizia, não gostava de mulher de óculos. Oras, indigna-se Zelão, que tipo de pederasta liga para esse tipo de coisa? Toda atividade em volta da profissão mais antiga do mundo é garantida pela pouca exigência dos homens. Zelão lembra-se da época da novela Pantanal. De uma hora para outra, todo mundo pirou de tesão na Juma, a mulher-onça. Aproveitando a onda, o agente passou a apresentar a maranhense Regina como “Oncinha do Pantanal”. A clientela enlouqueceu, e Regina voltou para o Maranhão rica e respeitada. O que ela tinha em comum com a atriz Cristiana Oliveira? Os cabelos longos, os olhos vesgos, e mais nada.

Bons e velhos tempos… Os homens de agora são todos umas bichas.

Os retoques, porém, foram só a primeira e mais inofensiva conseqüência da mudança. Depois de três meses, os arredores do fórum ostentavam um jardim mais belo e atraente: só tetas imensas e firmes, barrigas de tanquinho, bundas empinadas, coxas de cedro. Chegava a hora de colher os frutos de tanto investimento em estética. Ou pelo menos era o que ele, em sua inocência de benfeitor das putas, pensava. Porque elas, ah!, elas tinham outros planos.

Ora, elas trabalhavam à luz do dia. Os clientes eram atenciosos e tímidos. Os programas aconteciam de forma mais rápida — era necessário voltar ao escritório — e a rotatividade era maior. As ruas eram movimentadas. A polícia estava a postos. Em um cenário pacato assim, quem precisava de cafetão? Zelão acabou demitido por suas próprias protegidas.

E o pior é que não pode nem bater nas malditas. Porque agora, é claro, todas elas têm advogado.

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6 Comentários em “Fim de carreira”


  1. […] mais no Pândega. Posts que podem ter alguma coisa a ver com este aqui (ou […]

  2. Mortandela Says:

    Já se foi o tempo em q puta dava pra se reconhecer… hj em dia elas parecem mulheres normais q vc pega na balada… a nao ser em lugares como a joão XXIII na zl… hahah

  3. Mortandela Says:

    esqueci de dizer, muito bom o texto.

  4. Mari Paraguassú Says:

    Você escreve muito bem! Adorei!


  5. Simplesmente hilário!

    O texto ficou simples, direto. Fica fácil definir Zelão, traçar seu perfil. Tirou aquele peso do cafetão clichê, pra transformá-lo num empresário velho e cansado, quase um vovô, daqueles “linha dura”, que no fundo tem um coração de manteiga.


  6. Todo mundo falando de garotas de programa e você falando de negão. Por isso eu falo que você gosta de pipi. Muito loko Marco!


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