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Sobre Camila

26/03/08

Por Alex Falcão

Eu nunca tentei entendê-la. Nunca me preocupei com isso. O mais importante foi que, sim, eu a conheci. No apartamento 215, ela entrava apressada às 7 da manhã. Nos segundos em que sua porta ficava aberta, eu tinha a imagem do seu lar florido e colorido, talvez algo que ela quisesse encontrar ao voltar para casa.

Nas caminhadas pela rua Augusta em busca de qualquer boteco, não foram poucas as vezes em que a vi perto de alguma esquina, produzida em meio a tantas pessoas que buscavam da mais simples diversão, ou um gole de cerveja, a noites de fúria, interpretando uma personagem da mais pobre estirpe.

Juro que guardei o segredo. Sabia o que se passava na vida daquela moça de pele branca com visual hippie, cabelos longos cobrindo as costas, bolsa de alça cruzada ao peito e que não hesitava em chegar à roda para dividir o vinho nosso de cada dia, jogar conversa fora e participar da roda de violão.

Camila era a menina que sempre estava de passagem, gostava de conversar, compartilhar a alegria com os demais, mas nunca por muito tempo. Talvez para não apertar demais os laços, aquele carinho que prende sem folga e não nos deixa escapar uns dos outros. Talvez Camila só quisesse se alimentar do nosso riso, uma dose de alegria naquela vida de cão solitária e desumana da noite, da venda diária do corpo e da perda eterna da sua alma.

Nas conversas que rolavam à tarde, Camila sonhava. Queria voltar para sua Ubatuba onde nunca morou, mas onde, desde a primeira vez em que esteve, dizia ter encontrado seu verdadeiro lugar. Camila sempre nos carregava em seus sonhos. Tínhamos 18, 19 anos, e Camila, 27. Falava das coisas que não viveu, da sua futura casa na beira do mar e das redes que teríamos para dormir quando fôssemos visitá-la.

Mesmo com a sua presença constante, mas passageira pela galera, às vezes ficávamos dias sem vê-la. Quando andava com o passo rápido, óculos escuros, sem dizer um oi, eu tentava imaginar o peso que carregava sobre os ombros ou as marcas nos olhos que tentava esconder. Nesses dias, o corredor de acesso ao elevador onde ficávamos por horas conversando era gigantesco para Camila. Tinha que nos mostrar a personagem que era, totalmente distante de quem queria ser, uma contradição feita de sonhos e pesadelos.

Num sábado de manhã, Grace me ligou pedindo pra descer e ir ao apartamento de Camila. Da imagem que eu tinha na memória, só restavam as flores, o cheiro de incenso na sala e as paredes coloridas do seu lar. Ela estava lá: deitada, com marcas pelo corpo, sangue na boca e um olhar perdido, sentindo-se culpada pela própria existência. Não queria a nossa ajuda, a nossa compaixão. Na verdade, não queria que a víssemos naquele estado.

Camila contou a Grace que apanhou de um grupo de rapazes ao sair do trabalho, em um restaurante próximo à Vila Mariana onde trabalhava como garçonete. Por não ter a quem pedir ajuda, Camila não quis ir à delegacia, não quis contar detalhes. Só queria ficar sozinha.

Enquanto Grace foi à farmácia, ficamos a sós por meia hora. Não tive coragem de me abrir com ela, de contar que sabia das suas noites perdidas e da solidão e decepção que sentia ao voltar pra casa. Quando ela estava na roda da galera, por algumas horas, ela fazia parte de tudo aquilo, mas vendo-a naquele estado, no sofá, vi a real distância do mundo em que vivíamos.

Depois daquele sábado nunca mais a vi no prédio da rua Marques de Paranaguá, nº 96. Passei a imaginar para onde foi Camila, se ainda alimentava o seu sonho de mar, se passava as noites em claro agradando a pobres miseráveis, se ainda dormia em porta de metrô ou negociava a carona de volta pra casa. Durante algum tempo pensei em tudo que cercava o seu mundo.

Então, na tarde de um dia qualquer, ao lado da floricultura da Praça João Mendes, dividindo ponto com mais quatro mulheres, lá estava Camila. Interpretando a sua eterna personagem sob a luz do dia, sem aplausos, sem admiração. Não deixei que ela me visse, ela não precisava dessa lembrança de quem somos e de quem gostaríamos de ser. O seu olhar perdido ainda era o mesmo, mas Camila continuava cercada de flores.

Índia vespertina

26/03/08

(Domingo de Páscoa)

Eu aproveito os feriados santos para fazer mea culpa com a família. Páscoa é perfeita. Sempre foi. A morte, a ressurreição, como uma despedida dos péssimos exemplos (a ausência) e a promessa de uma nova vida (a presença). Nada como chocolate meio amargo e bacalhau imperial para sair ileso.

Com o tempo, e o preço da culpa subindo no mercado familiar, tive que assumir algumas panelas. Só os presentes finos não encantavam o suficiente. Era justo e prazeroso cozinhar para minha mãe, sobrinhas e irmãs – agregados inclusos. Eu adorava vê-las papeando ao invés de vestirem aventais. A criançada correndo, as mulheres de bochecha vermelha por causa do álcool e os homens discutindo futebol.

Minha única exigência era ouvir Billie Holiday enquanto tirava o sal do peixe e picava os temperos do refogado. Quando tocava “Tenderly” eu colocava a culpa na cebola por deixar algumas lágrimas escorrerem. Sorte a minha nunca ninguém conferir a tábua e descobrir que era salsinha que eu picava nessa hora.

Mas como em todo mercado especulativo, os preços sobem. Minha mãe sentia falta de uma companhia feminina. Não sei se ela queria mais netos ou conhecer que tipo de mulher me agradava. Eu, depois dos 30 anos, sempre aparecia sozinho nessas ocasiões. Não era um vinho verde português que minha mãe queria ver minhas mãos carregando. Definitivamente ela queria uma nora.

Foi somente na loja de chocolates finos, na mesma semana da páscoa, que atentei para a possibilidade de minha mãe achar que eu era gay. Aquilo me deixou meio atordoado. As compras de chocolate foram meio sufocantes. Minha mãe não merecia ter esse tipo de pensamento. Para mim não, mas para ela a homossexualidade era algo terrível. Eu adorava as mulheres, mas não via atalhos de levá-las ao lar sagrado da matrona. Fazia parte do meu mise en scene mantê-las afastada da família.

Enquanto faziam os embrulhos luxuosos nos ovos de páscoa, fui até a porta da loja tomar um ar. Bela decisão para me acalmar. Era uma brisa típica de chuva: cheirosa e nervosa, acompanhada de nuvens cinza. Escolhi uma loja da rede de chocolates que fica bem no centro velho de São Paulo. Praça João Mendes quase esquina com Quintino Bocaiúva. Logo na porta, alguma mulheres ofereciam prazer. Eu sempre reparei nelas trabalhando à tarde nas cidades, seja em Campinas, São Paulo ou Rio de Janeiro, próximas aos estabelecimentos da Justiça, mas algumas novidades saltavam aos olhos. A maioria agora era de mulheres mais novas.

Uma delas era muito bonita, como uma índia da floresta. Seus cabelos lisos e negros, pele bem morena e olhos levemente puxados me enfeitiçaram. Queria saber seus segredos ali na rua mesmo, no sol forte, entre os assovios de vagabundos e pedreiros de folga. Ela era alegre, abordava todos sem distinção. As colegas só abordavam os homens mais simples. Quando criei coragem para chegar perto, a atendente da loja me chamou dizendo que os embrulhos estavam prontos. Um coitus interruptus.

Desencorajado, fui buscar os pacotes. Quando voltei para a brisa fresca e a penetrante visão da índia de mini saia, as sacolas e laços chamaram a atenção dos olhos negros da belle de jour. “Gaste aqui um dinheirinho comigo também, galego!”. Arregalei o olho e disse sim, com as sacolas na mão. Sorrindo – ao contrário de suas colegas – deixou tudo muito claro sobre preços, local e detalhes desconcertantes para clientes especiais. Eu respondi dizendo que pagava o dobro só para conversar e tomar uma cerveja. Ela ficou séria. Disse que não bebia em serviço. “Eu bebo e você toma um suco ou um café”, argumentei. Olhando para a catedral da Sé ela me disse que não tinha sede e nem necessidade de conversar. Percebi que sua vaidade foi ferida e consertei rapidamente a grosseria dizendo que ela era linda, que não escolheria outra senão ela, mas que eu estava sem condições de praticar o ato. “Sua companhia na conversa terá o mesmo efeito” disse sem saber se ela entenderia.

Ela aceitou muito a contragosto. Receosa e desconfiada de qualquer ameaça ou risco, escolheu a espelunca para bebermos. O bar era sujo, lotado de frequentadores típicos do centro velho e música muito alta na jukebox. Sua opinião a meu respeito devia ser muito ruim. Minha curiosidade não se importava com isso, só queria saber como aquela mulher linda tinha chegado ali, na Praça da Sé para se prostituir. Demorou até convencê-la que eu não era polícia, maníaco sexual ou paranóico. Mas depois disso se soltou.

Sua rota e paradeiro era a Espanha. Queria se prostituir lá, como tantas outras da sua cidade, no interior de Goiás. Voltavam ricas e algumas casadas com estrangeiros. Mas seu agenciador disse que, ultimamente, os vistos eram negados, havia mais rigor para entrar na Europa. Ele sugeriu que esperasse a poeira baixar e ficasse em São Paulo por um tempo. Garota do interior, com certa ingenuidade, não sabia o que a esperava na metrópole. Disse-me que nasceu bem, em família que não passava por dificuldades, mas que ela gostava muito de sexo e seu pai a expulsou de casa quando fez um aborto escondido aos quinze anos. Ele descobriu e não a perdoou. Talvez até perdoasse a ninfomania, mas não o crime ao feto de 2 meses. Hoje, com 22 anos, havia completado poucos meses na nova profissão.

Contou muita coisa. Se soltou mesmo. Não me chocava aquilo tudo. Ela imprimia um ar trágico que tirava o lado realista do fato. Uma dúvida precisava ser esclarecida: porque ela trabalhava à tarde? Nenhuma inspiração na atuação de Catherine Deneuve, mas na proteção do “cumpadi”, o agenciador, que garantia os clientes mais tranqüilos e sem confusões que os clientes noturnos costumam causar. Ela virava abóbora às 18 horas.

Por não ter me influenciado por todas aquelas mazelas, ainda sobrou espaço para me inspirar numa idéia mirabolante. “Quanto ela cobraria para passar a Páscoa comigo e com minha família?”. Minha mãe ia passar uma Páscoa mais feliz se eu chegasse acompanhado. A índia não tinha estereótipo de prostituta. Só possuía roupas curtas e lascivas demais no seu armário, mas qualquer banho de loja na Vila Madalena a transformaria numa estudante de teatro ou numa hippie universitária. Fantasia ideal para tornar uma mãe convencida da masculinidade do filho.

Não me deu muito trabalho e topou. Ela criou afeição ao meu lado ouvinte, carente como só ela. Fez o preço e ficou combinado de passarmos a Páscoa juntos. No sábado de aleluia nos encontramos à tarde e fizemos compras. Roupas pra ela, bacalhau no Mercadão, mais chocolates e muita cerveja entre uma loja e outra. Que companhia agradável ela era; me deixava impressionado. Transformava todo aquele compromisso numa festa à fantasia, numa diversão programada. Como virava abóbora às dezoito horas, por causa do “cumpadi”, não ouviu toda a receita da portuguesa do bar ao lado da Rua Augusta. Eu ouvi e me inspirei para cozinhar no dia seguinte.

E assim a índia da Praça da Sé, que virou Bianca para a família, se apresentou como minha namorada. “Moça de poucas palavras” disse minha mãe. Aliviado, respondi que essa era sua maior virtude nesse pouco tempo que a conhecia. Minhas irmãs dançaram com ela, minhas sobrinhas mostraram todas as bonecas e meus cunhados a mediram maliciosamente de cima a baixo. Não precisei de Billie Holiday para cozinhar. A presença de Bianca me ocupava o tempo inteiro e meus ouvidos precisavam ficar atentos. Que atriz! Que presença de espírito! Comecei a acreditar em algumas estórias que ela contou naquela espelunca por conta dessa atuação na casa da minha mãe.

Missão cumprida. Engoliram Bianca junto com o bacalhau , o vinho português e o chocolate. O domingo de Páscoa passou rápido, pois às 18 horas a índia virava abóbora. Foi perfeito. Uma aventura arriscada que deixou minha mãe tranqüila e me fez conhecer uma mulher e tanto. Não a vi mais e nem soube o nome dela.