Sobre Camila

Publicado 26/03/08 por alexfalcao23
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Por Alex Falcão

Eu nunca tentei entendê-la. Nunca me preocupei com isso. O mais importante foi que, sim, eu a conheci. No apartamento 215, ela entrava apressada às 7 da manhã. Nos segundos em que sua porta ficava aberta, eu tinha a imagem do seu lar florido e colorido, talvez algo que ela quisesse encontrar ao voltar para casa.

Nas caminhadas pela rua Augusta em busca de qualquer boteco, não foram poucas as vezes em que a vi perto de alguma esquina, produzida em meio a tantas pessoas que buscavam da mais simples diversão, ou um gole de cerveja, a noites de fúria, interpretando uma personagem da mais pobre estirpe.

Juro que guardei o segredo. Sabia o que se passava na vida daquela moça de pele branca com visual hippie, cabelos longos cobrindo as costas, bolsa de alça cruzada ao peito e que não hesitava em chegar à roda para dividir o vinho nosso de cada dia, jogar conversa fora e participar da roda de violão.

Camila era a menina que sempre estava de passagem, gostava de conversar, compartilhar a alegria com os demais, mas nunca por muito tempo. Talvez para não apertar demais os laços, aquele carinho que prende sem folga e não nos deixa escapar uns dos outros. Talvez Camila só quisesse se alimentar do nosso riso, uma dose de alegria naquela vida de cão solitária e desumana da noite, da venda diária do corpo e da perda eterna da sua alma.

Nas conversas que rolavam à tarde, Camila sonhava. Queria voltar para sua Ubatuba onde nunca morou, mas onde, desde a primeira vez em que esteve, dizia ter encontrado seu verdadeiro lugar. Camila sempre nos carregava em seus sonhos. Tínhamos 18, 19 anos, e Camila, 27. Falava das coisas que não viveu, da sua futura casa na beira do mar e das redes que teríamos para dormir quando fôssemos visitá-la.

Mesmo com a sua presença constante, mas passageira pela galera, às vezes ficávamos dias sem vê-la. Quando andava com o passo rápido, óculos escuros, sem dizer um oi, eu tentava imaginar o peso que carregava sobre os ombros ou as marcas nos olhos que tentava esconder. Nesses dias, o corredor de acesso ao elevador onde ficávamos por horas conversando era gigantesco para Camila. Tinha que nos mostrar a personagem que era, totalmente distante de quem queria ser, uma contradição feita de sonhos e pesadelos.

Num sábado de manhã, Grace me ligou pedindo pra descer e ir ao apartamento de Camila. Da imagem que eu tinha na memória, só restavam as flores, o cheiro de incenso na sala e as paredes coloridas do seu lar. Ela estava lá: deitada, com marcas pelo corpo, sangue na boca e um olhar perdido, sentindo-se culpada pela própria existência. Não queria a nossa ajuda, a nossa compaixão. Na verdade, não queria que a víssemos naquele estado.

Camila contou a Grace que apanhou de um grupo de rapazes ao sair do trabalho, em um restaurante próximo à Vila Mariana onde trabalhava como garçonete. Por não ter a quem pedir ajuda, Camila não quis ir à delegacia, não quis contar detalhes. Só queria ficar sozinha.

Enquanto Grace foi à farmácia, ficamos a sós por meia hora. Não tive coragem de me abrir com ela, de contar que sabia das suas noites perdidas e da solidão e decepção que sentia ao voltar pra casa. Quando ela estava na roda da galera, por algumas horas, ela fazia parte de tudo aquilo, mas vendo-a naquele estado, no sofá, vi a real distância do mundo em que vivíamos.

Depois daquele sábado nunca mais a vi no prédio da rua Marques de Paranaguá, nº 96. Passei a imaginar para onde foi Camila, se ainda alimentava o seu sonho de mar, se passava as noites em claro agradando a pobres miseráveis, se ainda dormia em porta de metrô ou negociava a carona de volta pra casa. Durante algum tempo pensei em tudo que cercava o seu mundo.

Então, na tarde de um dia qualquer, ao lado da floricultura da Praça João Mendes, dividindo ponto com mais quatro mulheres, lá estava Camila. Interpretando a sua eterna personagem sob a luz do dia, sem aplausos, sem admiração. Não deixei que ela me visse, ela não precisava dessa lembrança de quem somos e de quem gostaríamos de ser. O seu olhar perdido ainda era o mesmo, mas Camila continuava cercada de flores.

Índia vespertina

Publicado 26/03/08 por a28z
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(Domingo de Páscoa)

Eu aproveito os feriados santos para fazer mea culpa com a família. Páscoa é perfeita. Sempre foi. A morte, a ressurreição, como uma despedida dos péssimos exemplos (a ausência) e a promessa de uma nova vida (a presença). Nada como chocolate meio amargo e bacalhau imperial para sair ileso.

Com o tempo, e o preço da culpa subindo no mercado familiar, tive que assumir algumas panelas. Só os presentes finos não encantavam o suficiente. Era justo e prazeroso cozinhar para minha mãe, sobrinhas e irmãs – agregados inclusos. Eu adorava vê-las papeando ao invés de vestirem aventais. A criançada correndo, as mulheres de bochecha vermelha por causa do álcool e os homens discutindo futebol.

Minha única exigência era ouvir Billie Holiday enquanto tirava o sal do peixe e picava os temperos do refogado. Quando tocava “Tenderly” eu colocava a culpa na cebola por deixar algumas lágrimas escorrerem. Sorte a minha nunca ninguém conferir a tábua e descobrir que era salsinha que eu picava nessa hora.

Mas como em todo mercado especulativo, os preços sobem. Minha mãe sentia falta de uma companhia feminina. Não sei se ela queria mais netos ou conhecer que tipo de mulher me agradava. Eu, depois dos 30 anos, sempre aparecia sozinho nessas ocasiões. Não era um vinho verde português que minha mãe queria ver minhas mãos carregando. Definitivamente ela queria uma nora.

Foi somente na loja de chocolates finos, na mesma semana da páscoa, que atentei para a possibilidade de minha mãe achar que eu era gay. Aquilo me deixou meio atordoado. As compras de chocolate foram meio sufocantes. Minha mãe não merecia ter esse tipo de pensamento. Para mim não, mas para ela a homossexualidade era algo terrível. Eu adorava as mulheres, mas não via atalhos de levá-las ao lar sagrado da matrona. Fazia parte do meu mise en scene mantê-las afastada da família.

Enquanto faziam os embrulhos luxuosos nos ovos de páscoa, fui até a porta da loja tomar um ar. Bela decisão para me acalmar. Era uma brisa típica de chuva: cheirosa e nervosa, acompanhada de nuvens cinza. Escolhi uma loja da rede de chocolates que fica bem no centro velho de São Paulo. Praça João Mendes quase esquina com Quintino Bocaiúva. Logo na porta, alguma mulheres ofereciam prazer. Eu sempre reparei nelas trabalhando à tarde nas cidades, seja em Campinas, São Paulo ou Rio de Janeiro, próximas aos estabelecimentos da Justiça, mas algumas novidades saltavam aos olhos. A maioria agora era de mulheres mais novas.

Uma delas era muito bonita, como uma índia da floresta. Seus cabelos lisos e negros, pele bem morena e olhos levemente puxados me enfeitiçaram. Queria saber seus segredos ali na rua mesmo, no sol forte, entre os assovios de vagabundos e pedreiros de folga. Ela era alegre, abordava todos sem distinção. As colegas só abordavam os homens mais simples. Quando criei coragem para chegar perto, a atendente da loja me chamou dizendo que os embrulhos estavam prontos. Um coitus interruptus.

Desencorajado, fui buscar os pacotes. Quando voltei para a brisa fresca e a penetrante visão da índia de mini saia, as sacolas e laços chamaram a atenção dos olhos negros da belle de jour. “Gaste aqui um dinheirinho comigo também, galego!”. Arregalei o olho e disse sim, com as sacolas na mão. Sorrindo – ao contrário de suas colegas – deixou tudo muito claro sobre preços, local e detalhes desconcertantes para clientes especiais. Eu respondi dizendo que pagava o dobro só para conversar e tomar uma cerveja. Ela ficou séria. Disse que não bebia em serviço. “Eu bebo e você toma um suco ou um café”, argumentei. Olhando para a catedral da Sé ela me disse que não tinha sede e nem necessidade de conversar. Percebi que sua vaidade foi ferida e consertei rapidamente a grosseria dizendo que ela era linda, que não escolheria outra senão ela, mas que eu estava sem condições de praticar o ato. “Sua companhia na conversa terá o mesmo efeito” disse sem saber se ela entenderia.

Ela aceitou muito a contragosto. Receosa e desconfiada de qualquer ameaça ou risco, escolheu a espelunca para bebermos. O bar era sujo, lotado de frequentadores típicos do centro velho e música muito alta na jukebox. Sua opinião a meu respeito devia ser muito ruim. Minha curiosidade não se importava com isso, só queria saber como aquela mulher linda tinha chegado ali, na Praça da Sé para se prostituir. Demorou até convencê-la que eu não era polícia, maníaco sexual ou paranóico. Mas depois disso se soltou.

Sua rota e paradeiro era a Espanha. Queria se prostituir lá, como tantas outras da sua cidade, no interior de Goiás. Voltavam ricas e algumas casadas com estrangeiros. Mas seu agenciador disse que, ultimamente, os vistos eram negados, havia mais rigor para entrar na Europa. Ele sugeriu que esperasse a poeira baixar e ficasse em São Paulo por um tempo. Garota do interior, com certa ingenuidade, não sabia o que a esperava na metrópole. Disse-me que nasceu bem, em família que não passava por dificuldades, mas que ela gostava muito de sexo e seu pai a expulsou de casa quando fez um aborto escondido aos quinze anos. Ele descobriu e não a perdoou. Talvez até perdoasse a ninfomania, mas não o crime ao feto de 2 meses. Hoje, com 22 anos, havia completado poucos meses na nova profissão.

Contou muita coisa. Se soltou mesmo. Não me chocava aquilo tudo. Ela imprimia um ar trágico que tirava o lado realista do fato. Uma dúvida precisava ser esclarecida: porque ela trabalhava à tarde? Nenhuma inspiração na atuação de Catherine Deneuve, mas na proteção do “cumpadi”, o agenciador, que garantia os clientes mais tranqüilos e sem confusões que os clientes noturnos costumam causar. Ela virava abóbora às 18 horas.

Por não ter me influenciado por todas aquelas mazelas, ainda sobrou espaço para me inspirar numa idéia mirabolante. “Quanto ela cobraria para passar a Páscoa comigo e com minha família?”. Minha mãe ia passar uma Páscoa mais feliz se eu chegasse acompanhado. A índia não tinha estereótipo de prostituta. Só possuía roupas curtas e lascivas demais no seu armário, mas qualquer banho de loja na Vila Madalena a transformaria numa estudante de teatro ou numa hippie universitária. Fantasia ideal para tornar uma mãe convencida da masculinidade do filho.

Não me deu muito trabalho e topou. Ela criou afeição ao meu lado ouvinte, carente como só ela. Fez o preço e ficou combinado de passarmos a Páscoa juntos. No sábado de aleluia nos encontramos à tarde e fizemos compras. Roupas pra ela, bacalhau no Mercadão, mais chocolates e muita cerveja entre uma loja e outra. Que companhia agradável ela era; me deixava impressionado. Transformava todo aquele compromisso numa festa à fantasia, numa diversão programada. Como virava abóbora às dezoito horas, por causa do “cumpadi”, não ouviu toda a receita da portuguesa do bar ao lado da Rua Augusta. Eu ouvi e me inspirei para cozinhar no dia seguinte.

E assim a índia da Praça da Sé, que virou Bianca para a família, se apresentou como minha namorada. “Moça de poucas palavras” disse minha mãe. Aliviado, respondi que essa era sua maior virtude nesse pouco tempo que a conhecia. Minhas irmãs dançaram com ela, minhas sobrinhas mostraram todas as bonecas e meus cunhados a mediram maliciosamente de cima a baixo. Não precisei de Billie Holiday para cozinhar. A presença de Bianca me ocupava o tempo inteiro e meus ouvidos precisavam ficar atentos. Que atriz! Que presença de espírito! Comecei a acreditar em algumas estórias que ela contou naquela espelunca por conta dessa atuação na casa da minha mãe.

Missão cumprida. Engoliram Bianca junto com o bacalhau , o vinho português e o chocolate. O domingo de Páscoa passou rápido, pois às 18 horas a índia virava abóbora. Foi perfeito. Uma aventura arriscada que deixou minha mãe tranqüila e me fez conhecer uma mulher e tanto. Não a vi mais e nem soube o nome dela.

“Vida fácil?”

Publicado 25/03/08 por Fernando Thadeu
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“Acabou. Não via a hora desse lixo sair de cima de mim. Fedido, e só fala bosta.”

– Nossa heim! Você é muito gostosa.

“Não diga? E você é nojento.” – Obrigada.

Preciso estudar pra sair dessa vida. “Tá cada dia mais pior”. Ontem foi aquele xarope que me deu um soco na cara, quando eu disse que não ia com ele porque estava bêbado demais. Outro dia um espertinho falou que tinha esquecido a carteira no carro e me deu um perdido. Me fodeu duas vezes o filhadaputa! – “Estou cansada desses tipos.

É acho que vou ver aquele esquema com a Marcinha. Tá com um monte de roupa nova, e disse que tá cheia de namorado bonito. Ela até me chamou outro dia pra fazer ponto com ela na São João. Não acreditei muito naquela estória de fazer programa na hora do almoço, mas acho que preciso tentar. Um monte de escritório perto, os clientes estão todos cheirosos e arrumadinhos. Uma mistura de homens de terno (sou louca por homens de terno), e molecada nova louca pra fazer o que eles veêm na internet. Fora é claro, que o preço do programa é bem melhor. Trabalhando mais uns dois anos eu já consigo me arrumar.

– Posso tomar um banho rapidinho?

– Não tem chuveiro no banheiro.

– Humpf!

Ainda quer reclamar?” Mas também isso aqui tá uma merda mesmo. E ele nem está assim tão xapado como pensei. Mas está fedido. Quando eu vim pra cá, aqui era bem falado. Hoje dá até nojo, uma espelunca das piores, deve ser por isso do meu desânimo. É sair daqui e ir pra estrada. – “Aff.”

– O quê?

– Nada. Quer dizer, trinta conto.

– Ué!?! Eu já não paguei?

– “Pronto. Mais um que esqueceu a carteira no carro. Ele que venha com essa estórinha que eu viro bicho aqui.” – Não gato. Você não me deu nada, só prazer até agora. Lindo!

– Opa! Então toma ai.

– “Agora sim me deu prazer”. Tá certo gato. Vamos sair? Já deu o horário também. “E eu não aguento mais ficar aqui com você.

– Opa! Vamos.

Saio do quarto e no corredor fica nosso banheiro menos sujo, me despeço do fedido e entro pra carregar mais um pouco a maquiagem. Arrumo a roupa, carrego no perfume da Cristhina, dou um tapa no cabelo e saio com o sorriso no rosto. Garota que não sorri não ganha dinheiro. E por saber que hoje é meu último dia aqui, já estou feliz imaginando os bonitinhos que vão me dar dinheiro amanhã de tarde.

– Oi coisa linda.

– “Oi coisa estranha.” – Tudo bem querido? Quer dar uma trepada?

Comprimidos e conhaque

Publicado 24/03/08 por Vinícius
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Por Vinícius Peixoto

– Nome?
– Malu.
– Malu de quê? Quero o nome completo.
– Maria Lúcia da Silva
– Profissão?
– Puta.
– Como assim, “puta”?
– Puta! Vendo meu corpo por dinheiro. Faço sexo com homens para garantir meu sustento.

Já era noite quando Malu saiu da delegacia. Aquele dia não lhe renderia mais nem um tostão. Estava decidida. Nunca mais ia passar uma madrugada naquelas ruas imundas e infernais da cidade. Disputava espaço com travestis violentos, bêbados valentes e metidos a estupradores, jovens ricos e justiceiros e as colegas de profissão, sempre desleais e traiçoeiras.

Lembrar de todas as vezes que foi espancada, queimada por pontas de cigarro acesas e molhada de urina ou outro dejeto deixava Malu triste e desanimada. Nunca fora outra coisa se não objeto sexual. Não teve opção. Só na adolescência, já sozinha no mundo, foi entender que aceitar doces do pai em troca de silêncio enquanto era violentada também podia ser uma forma de prostituição. Seguiu em frente. Rodou boa parte do país em boléias de caminhão, ao lado de homens barrigudos, fedidos e, como seu pai, violentos. Fazia sexo por comida, por dinheiro, por carona ou simplesmente para não ser morta.

Aliás, já considerava morta a parte do seu corpo que servia de escape para aqueles monstros barbudos que encontrava. Não via serventia para aquele buraco. Na cabeça da jovem Malu, servia apenas para excretar seus restos e servir de abrigo para corpos cansados, inseguros e solitários.

Quando chegou na cidade, depois de depender da bondade condicional de desconhecidos, percebeu que sua vida poderia ser diferente. Firmou ponto em uma das ruas do centro e foi dividir um quarto com mais três mulheres da vida. Uma delas, Raíssa, ensinou à Malu a forma mais fácil de sair da realidade. “Um comprimido de Lexotan e um gole de conhaque! Está aqui a sua passagem para o mundo perfeito! O mundo do seu jeito, com a sua cara!”.

Assim que o cruel assassinato de Raíssa apareceu em todos os noticiários, Malu e suas companheiras decidiram mudar o horário de trabalho. Era mais seguro trabalhar à tarde, diziam. Malu agora dividia o espaço com camelôs, vendedores e os transeuntes que lotam aquela região da cidade todos os dias. Sem preocupação com a polícia e com homens violentos, tudo era mais fácil. Seus clientes barbudos foram substituídos por jovens de terno e gravata, igualmente solitários e inseguros e sua vida se resumia em uma única coisa: garantir a cartela de comprimidos e a garrafa de conhaque, seu passaporte para a felicidade.

Nada de ruim existia no caleidoscópio que aquela mistura criava na cabeça de Malu. Lá, onde era realmente livre, podia voar, amar e rir sem medo. Nada lhe custava e a brisa era morna e suave. Seu corpo moreno e esguio não carregava nenhuma cicatriz. O céu era azul, sem nenhuma nuvem. Visitava o mar sempre que queria e descansava sob a sombra de árvores com frutos saborosos. Ali, sim, a vida de Malu era perfeita. Seus cabelos, castanhos e cacheados, caíam sobre os ombros com leveza. Seu sorriso era alvo e brilhante. Sua gargalhada ecoava nos quatro cantos.

Mas nada dura para sempre. Nem o sonho insano que o comprimido causava. Logo, o céu ficava escuro, uma dor insuportável tomava conta de sua espinha e o despertar era amargo, tinha gosto de fel. Malu precisava levantar, aprontar-se para o trabalho e sair na esperança de ter uma tarde agradável, sem precisar responder às perguntas do delegado:

– Nome?
– Malu
– Malu de quê? Quero o nome completo
– Maria Lúcia da Silva
– Profissão?
– Puta.

Fim de carreira

Publicado 24/03/08 por Marco Aurélio Gois dos Santos
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No começo, pareceu uma boa idéia.

“É mais seguro”, elas diziam. “Os clientes são melhores”, argumentavam. “A concorrência é menor”, lembravam. Não tinha como dar errado, então ele cedeu. Estava empolgado com a descoberta do novo nicho em um mercado tão antigo e saturado.

“Putas filhas da puta”, é o pensamento com sabor de genealogia bíblica que lhe ocupa a mente agora, enquanto caminha sob a luz dos postes na praça vazia. Nos bons tempos, a João Mendes era um jardim e todas as flores eram dele. Ele, Zelão, clássico agente do amor profissional, tinha uma carreira para se orgulhar. No começo, anos 70, ostentava uma vasta cabeleira afro, estolas de pele, calças boca-de-sino listradas e justas, sapatos de plataforma, tudo inspirado pelos pimps gringos. Daquela época, guardava apenas a unha crescida e pontiaguda do mindinho esquerdo e seu código de honra: proteger as meninas, orientá-las e ganhar sua vida com base no respeito mútuo. O frágil equilíbrio — ele, elas, os clientes, a polícia, as senhoras da sociedade — era mantido a muito custo. Então veio a idéia do novo turno de trabalho, e a receita degringolou.

Primeiro foi a revolução das estrias. As damas da noite não são “da noite” por acaso: a penumbra é sua aliada contra os estragos do tempo e das circunstâncias. Todos os gatos são pardos, todas as putas são belas. O cliente as encontra no escuro, no escuro caminham juntos até o hotel, num quartinho escuro consomem o ato rapidamente, e eis duas pessoas satisfeitas: o homem que aliviou a pressão, a mulher que prestou um serviço e recebeu seu pagamento. Equilíbrio, pensa Zelão agora, é o segredo de tudo. Mas durante o dia o equilíbrio se acaba: mais justas e brancas do que Deus, as calças transparecem celulites. Os tops mínimos favorecem os pneus e as cicatrizes de cesarianas. Um dia de atraso no retoque da tintura faz os cabelos brancos saltarem à vista de quem passa. Some-se a isso o perfil do homem moderno — um afeminado que deixou de gostar de mulher e passou a reparar em veadagens como estrias, celulite, culotes — e está formado o furdunço.

A primeira a reclamar foi Creuza, uma mulata já mais para os quarenta do que para os trinta. A cicatriz diagonal no colo é lembrança de uma navalhada precisa, aplicada como punição dez anos atrás. Zelão não se arrepende da navalhada: a crioula estava pedindo. Além do mais, largara a navalha no mesmo instante para levar a piranha até o hospital. Passou a noite segurando sua mão, enquanto ela chorava e pedia perdão. Ingrata. Ao notar que a luz do dia tornava impossível disfarçar a cicatriz, resolvera pedir, ou melhor, exigir uma reparação. Nos bons tempos, a reação imediata de Zelão seria aplicar outra navalhada e dar o assunto por encerrado. Mas os bons tempos já iam longe, então ele concordou em cortar sua comissão pela metade para bancar a cirurgia da moça. Um prejuízo danado, que Creuza tratou de multiplicar espalhando a história entre as colegas. Em pouco tempo, a principal atividade do cafetão era administrar os pedidos de lipoaspirações, peitos e beiços de silicone, apliques, depilações a laser, o diabo a quatro.

A cirurgia de miopia para Soraya foi a gota d’água. Um cliente preferencial, ela dizia, não gostava de mulher de óculos. Oras, indigna-se Zelão, que tipo de pederasta liga para esse tipo de coisa? Toda atividade em volta da profissão mais antiga do mundo é garantida pela pouca exigência dos homens. Zelão lembra-se da época da novela Pantanal. De uma hora para outra, todo mundo pirou de tesão na Juma, a mulher-onça. Aproveitando a onda, o agente passou a apresentar a maranhense Regina como “Oncinha do Pantanal”. A clientela enlouqueceu, e Regina voltou para o Maranhão rica e respeitada. O que ela tinha em comum com a atriz Cristiana Oliveira? Os cabelos longos, os olhos vesgos, e mais nada.

Bons e velhos tempos… Os homens de agora são todos umas bichas.

Os retoques, porém, foram só a primeira e mais inofensiva conseqüência da mudança. Depois de três meses, os arredores do fórum ostentavam um jardim mais belo e atraente: só tetas imensas e firmes, barrigas de tanquinho, bundas empinadas, coxas de cedro. Chegava a hora de colher os frutos de tanto investimento em estética. Ou pelo menos era o que ele, em sua inocência de benfeitor das putas, pensava. Porque elas, ah!, elas tinham outros planos.

Ora, elas trabalhavam à luz do dia. Os clientes eram atenciosos e tímidos. Os programas aconteciam de forma mais rápida — era necessário voltar ao escritório — e a rotatividade era maior. As ruas eram movimentadas. A polícia estava a postos. Em um cenário pacato assim, quem precisava de cafetão? Zelão acabou demitido por suas próprias protegidas.

E o pior é que não pode nem bater nas malditas. Porque agora, é claro, todas elas têm advogado.

A Última Gota

Publicado 24/03/08 por zunica
Categorias: Textos

Trabalho no Round Midnight, um bar no Arouche, freqüentado por todo tipo de gente, de gringos do Bourbon Hotel a estudantes de arte. Uma espécie de Café de Fleur’s paulistano.

Sou um estudioso. Meu objeto de estudo são as pessoas. Alimento-me de suas histórias, suas expressões, seus desejos, seus movimentos. Sinto com elas o gosto de cada gota dos drinques que lhes sirvo. Por isso vim trabalhar no Midnight, e aqui estou há tantos anos.

Dentre os tipos de pessoas, um dos que mais me fascina são as Damas da Noite. Talvez seja meu fraco por mulheres, misturado a meu fraco pela decadência humana. Afinal, nenhuma mulher é mais mulher, e nenhum humano é mais humano – ou decadente – do que elas.

Adelaide é um exemplar interessante de desse tipo de material humano, e uma das freqüentadoras do bar que mais me ocupa. Diz ter estar na segunda metade dos quarenta, mas desconfio que tenha bem menos, e o tempo cronológico não tenha acompanhado a degradação do corpo proveniente da vida pouco ortodoxa que leva.

Às vezes tirava da bolsa um batom e um espelho, e ficava um tempo indefinível olhando para eles, numa melancolia diáfana. Era sempre um batom de péssima qualidade, dava uma impressão viscosa, artificial aos lábios. Não que lhe faltasse dinheiro para comprar uma marca melhor, isso ela tinha, mas não valia a pena. Não para gastar nos lábios de completos estranhos.

Adelaide chegava a sentir-se culpada pelo destino que dava a sua maquiagem. Era doloroso se arrumar, caprichar no rímel e no perfume para misturá-los ao suor dos vagabundos e cretinos que alugavam seu corpo sem sequer reparar no meticuloso tratamento. Chegava a gastar mais tempo se arrumando do que estragando o visual na cama.

Contemplar as rugas contrastantes com a maquiagem lhe dava certo prazer sádico. Seu gosto apurado para moda julgava criticamente as roupas que usava. O corpete vermelho, a saia de vinil, as botas de cano alto, a pintura exagerada. Estava vulgar, espalhafatosa, ridícula. Era um palhaço para divertir adultos. Uma atriz. Encenava uma releitura de si mesma, caricatura cruel de um tempo e um lugar áridos, escrita por mãos ébrias e vacilantes. Simplesmente perfeita.

Quando a conheci, ela trabalhava numa casa luxuosa, vestia-se bem, era sorridente, apesar de o entusiasmo transbordar cocaína. Era estudante de letras e se prostituía para pagar a faculdade. Ganhava bem seus dez ou doze mil reais por mês. Adotou o nome de Lucíola, numa brincadeira literária que certamente faria José de Alencar se revirar no túmulo. Vinha todas as manhãs, quando eu abria o bar, e tomava uma vodca Absolut. Os anos vieram, ela não se formou e passou a idade limite da Casa de Diversões Alternativas. Teve que se transferir para um prostíbulo menor, mas continuava vindo aqui. Sentia-se num ambiente menos hostil.

Começou a fazer programa em seu apartamento, mas precisou aderir a um cafetão para se proteger,depois que um cliente arrancou-lhe três dentes e deixou-lhe quase morta, porque não quis pagar o serviço. O cafetão ficou cada vez mais ganancioso e Adelaide teve que se mudar para um apartamento menor. Os clientes fiéis levaram sua fidelidade a garotas mais novas, de carnes mais firmes, e Lucíola começou a figurar nas ruas. Não parecia se importar, enxergava certo charme no ar noturno. Flertar com desavisados, seduzir pais de família e fazê-los perder o horário de voltar pra casa massageava seu ego.

Noite após noite, a cidade ficava mais violenta, e os cafetões se diversificaram. Agora, pagava aos policiais para poder trabalhar. Conforme a distribuição da renda se pulverizava, a vodca foi ficando mais barata e mais freqüente. A clientela também perdeu o glamour, e Lucíola tornou-se uma Geni urbana. “O seu corpo é dos errantes, dos cegos, dos retirantes, é de quem não tem mais nada”, diria Chico, ao ver a triste figura em que Lucíola converteu Adelaide.

Hoje, Lucíola tomou o golpe final. Antes podia suportar a idéia da própria ruína por sua ilusão romântica, sua personagem noturna, dividida maniqueísticamente. A Noite, porém, outrora uma mãe compreensiva que reconfortava os excluídos e encobria as vergonhas, expulsou suas filhas do lar. A máscara noturna se foi com a violência, e Lucíola, senhora de quarenta e tantos anos, varizes e olheiras profundas, recosta-se em um poste na Praça da República, exposta ao cruel olho de Apolo, para flertar com os transeuntes, impossibilitada de diferenciar entre os habituais desiludidos e os verdugos da moralidade. Corre o risco de se encontrar a qualquer momento com suas antigas colegas de universidade, com suas vizinhas beatas, com o senhorio da quitinete que habita.

Se antes a mascara noturna poderia preencher as manchas na pele, as covas fundas sob os olhos, a flacidez das coxas cansadas, a luz diurna é uma lente de aumento zombeteira. O charme Noir dá lugar a uma realidade humilhante. Adelaide está velha, uma idade física que avança sobre o tempo corrido. Anos multiplicados por dias e noites de festas, de dores, de um pesadelo que se disfarçava de ilusão. Adelaide está velha, e Lucíola não mais pode enganá-la.

A falsa euforia foi finalmente trocada pela vergonha, e agora ela passa aqui no final do novo expediente, às oito da noite. Gasta praticamente tudo o que ganha com cachaça, em um boteco três quarteirões abaixo daqui, e depois vêm tomar uma vodca, como antigamente. Demora-se por horas na mesa. O patrão jamais cogitou pedir que ela se vá. Tornou-se peça histórica do bar. Foi-se o dinheiro, ficou a piedade alheia. Não sei o que a embriaga mais, se a vodca ou a comiseração.

Na noite passada, Adelaide trouxe para a mesa um livro, e passou a noite toda em cima dele, com um pote de Liquid Paper e uma esferográfica preta. Quando se foi, me deixou o volume de presente. É um exemplar de Fausto, de Goethe. Em cada página, por cima do nome de Fausto, ela escreveu Adelaide. Em cima de Mefistófeles, Lucíola.

Desconfio que não a verei novamente.

Plínio Zúnica

Achei a merda

Publicado 19/03/08 por Marco Aurélio Gois dos Santos
Categorias: Geral

A merda estava na crítica do Vinícius ao texto do Alex. Não me venham com desculpas, não quero saber. E não me esmerdeiem mais o layout.

Fugghedaboudit

Publicado 19/03/08 por Marco Aurélio Gois dos Santos
Categorias: Geral

Alex e Vinícius, nem se preocupem em tentar entender o que aconteceu. Meu micro morreu, e junto com ele foi o banner que eu havia criado. O blog fica assim, então.

As belas da tarde

Publicado 15/03/08 por aninha08
Categorias: Textos

Os textos que serão publicados em breve têm como tema matéria da Folha Online, de 02/mar/08, Insegurança faz prostitutas trocarem noite pelo dia em São Paulo, sobre o fato de as prostitutas do centro trocarem a noite pela tarde em razão da violência. O gênero do texto deve ser o conto.

Enquanto espero a publicação dos textos, me lembrei de um poema de John Donne, Em despedida: proibindo o pranto, tradução de Augusto de Campos.Não sei por que a lembrança.

DEPOIS DAS FÉRIAS

Publicado 15/03/08 por aninha08
Categorias: Textos

Os textos abaixo No Ceará não tem disso não, por Alex Falcão; São Paulo marginal, por Fernando Thadeu; Cidade catótica, por Marco Aurélio;As loucuras da paixão, por Daniel Lucas; Putrefação Poética Paulistana, por Plinio Zúnica; Só em São Paulo, por Marcelo Fabri; e Vinicius com “u”, por favor, por Vinicius Peixoto foram produzidos a partir do tema “Isto só acontece em São Paulo”, para o gênero crônica. Me parece que esses foram os textos que mais receberam comentários dos leitores, talvez pela proximidade com o tema, talvez pela qualidade dos escritores. O que você acha, leitor? Deixe seu comentário.

No Ceará não tem disso não

Publicado 11/03/08 por zunica
Categorias: Textos

Por Alex Falcão

Peço licença para citar o rei do baião, mas no Ceará não tem disso não.
Um dos patrimônios de São Paulo é a pressa do cidadão. Com o seu passo acelerado, forte e marcado como quem vive sempre em atraso com a vida.

Vida que passa no trânsito da Marginal, nas filas, no semáforo, na manobra do caminhão. O minuto roubado que buscamos a todo o momento traze-lo de volta.

Se nos perguntássemos o motivo da pressa, a resposta seria convincente?

Justificaríamos a buzina ao carro da frente, a reclamação da fila no supermercado? São Paulo assiste seu povo lutar por esse sopro de tempo a todo instante. Sem perceber, viramos escravos do nosso relógio, cada vez mais alinhado com um atraso constante. Um atraso pra não sei o quê.

A busca pelo tempo perdido se transforma em um perde e ganha diário.

Passamos a contabilizar os 10 minutos perdidos na estação Barra Funda, os 5 minutos recuperados no caixa rápido, os 10 minutos do carro enguiçado, do motoboy atropelado na Rebouças, do sinal fechado. Tudo!

Nessa correria sem fim, tatuada em nossa pele, São Paulo passa a ser uma cidade em movimento. Apreciada somente em movimento, passamos a olhar seus parques de relance, sem um minuto de devoção. Passamos a olhar suas estátuas como vultos, confundidos com qualquer um na rua. Qualquer anônimo, sem nome, sem face, sem história.

Seus prédios são habitados por vizinhos que não se conhecem, que não tem tempo pra si, totalmente inversos as possibilidades que encontramos em cada pessoa. Uma leve decadência do bom dia. Meu pai também diz: “No Ceará não tem disso não”.

São Paulo vive em constante mutação para suprir a sua própria pressa.

Temos entregas pra tudo, supermercados 24 horas, motos malabaristas, ciclistas noturnos, rodízio de carros, faixas de ônibus, helicópteros, ambulâncias encurraladas.

São Paulo tem seu jeito, com ternura e união involuntária.
Quase nos abraçamos no vagão lotado da Sé, ouvimos a respiração um do outro no ônibus e na lotação. Sem querer ou escolher, foi desse jeito que a cidade nos uniu.

Ser diferente em São Paulo não necessita muito esforço. Não precisa mudar o penteado, falar outra língua, ter credo ou cor.
Sentimos-nos diferentes ao desacelerar o passo, deixando a correria de lado, esquecendo as horas, parando de acompanhar o vento. O Paulista escapa da sua cidade andando devagar, lentamente, vendo a cidade passar.
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Novidades

Publicado 04/03/08 por Marco Aurélio Gois dos Santos
Categorias: Textos

Muito bem, muito bem. Mudei a cara do negócio, e sapequei um sistema de estatísticas ali do lado. A única forma que encontrei pra fazer das críticas um link em cada post foi usando o sistema de comentários, trocando a palavra “comentário” por “crítica” e limitando a interação aos participantes do blog. Para isso, porém, eu precisaria enfiar outro sistema de comentários aqui, aberto aos leitores, mas não sei como fazer isso nesse novo sistema do Blogger. Se alguém souber, me diga.

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Perseguição ou romaria ?

Publicado 04/03/08 por Marco Aurélio Gois dos Santos
Categorias: Textos

Por Ana Ziccardi

Adorei a perseguição do Thadeu ao Marco nos comentários. Me lembrou Dom Quixote e Sancho Pança, mas tem algo diferente que não sei identificar…

Gostei dos comentários. Acredito que encontramos nosso caminho.

Afffffffff….

São Paulo marginal

Publicado 02/03/08 por Marco Aurélio Gois dos Santos
Categorias: Textos

Por Fernando Thadeu

Era para ser vinte caixas. Não acreditei que caberiam todas no carro, mas pela persistência dos sabedores de entregas acabei influenciado. O carro parecia mais um avião, com aquele bico levantado e a traseira quase lambendo o chão, lotado de caixas de folhas sulfite.

Por onde vamos e que horas são, foram questões que vieram na minha cabeça quando saímos a caminho de nossa entrega. Estávamos na zona oeste e a entrega seria na zona sul. Saber se o horário é propício e se existe algum caminho para fugir delas é essencial. Paulistano de carteirinha sabe que para atravessar a cidade precisa pegar as famosas marginais Pinheiros ou Tietê, um martírio para sanidade humana, pois o nome marginais, significa trânsito e stress. Seguiríamos pela Marginal Pinheiros até o fim, isto é, trânsito e stress até o final. Precisávamos fugir de comandos policias também, afinal polícia gosta de parar aviões quando estão fora dos aeroportos.

A pessoa que inventou o cigarro com certeza estava em uma das duas marginais em São Paulo. Só assim para enfrentá-las.

Logo na chegada na marginal, vimos as pontes que dão acesso a ela forrada de caminhões e carros. Pessoas falando no celular, outras cigarreando como nós, outras discutindo, outras dormindo, e outras querendo passar por cima do mar de veículos. Tudo parado, agradecemos ao inventor do cigarro e começamos o martírio. Depois do mesmo cd tocar três vezes conseguimos passar o carro velho que parava uma das maiores cidades do Mundo.

O caminho a seguir é tranqüilo, cheio de visões abstratas. Arranhacéus sendo construídos, outros mostrando toda sua imponência, favelas, mais carros e todo tipo de construção bem organizada, como trens ao lado de rio, casas nos morros, fios elétricos cobrindo o céu aberto para todos os lados e pontes caindo aos pedaços.

Os motoristas são os personagens de viagens como essa. Vemos desde moleques dirigindo carros velhos e carros novos nunca vistos dirigidos por gente velha. Fechadas, caminhões esbravejando fumaça, mudanças de faixa, típica de gente perdida, carros voltando de ré, para um acerto de caminho tudo que toda cidade grande tem, ou melhor que em São Paulo tem. Não é possível acreditar que isso existe em outras cidades. Crescer assim desorganizadamente não é pra qualquer um. São anos de experiência, e isso São Paulo tem de sobra. São 458 anos. São muitos anos, melhoras são quase impossíveis, e quando tentam causam mais complicações. Somos obrigados a enfrentar essa maratona para servir nossos clientes. Chegar, descarregar e receber nos faz esquecer que São Paulo difícil é essa de se sustentar. Na mesma medida de oportunidades que ela oferece, encontramos obstáculos. Tudo na mesma quantidade, na mesma proporção e com a mesma intenção.

Crítica ao texto “São Paulo marginal”

Por Marcelo Fabri

O texto de Fernando Thadeu, “São Paulo marginal”, é o relato do simples trajeto de um automóvel de um ponto a outro da cidade, para uma entrega de mercadorias, porém, recheado de situações e cenários tipicamente paulistanos. Com isso, Thadeu fica dentro do tema sugerido nessa etapa do projeto: “Isso só acontece em São Paulo”. Não faltaram congestionamentos, automóveis em mau estado, paisagens contrastantes, compulsão por cigarros e a resignação de ter uma vidinha “mais ou menos” na metrópole cinza. Thadeu não usa clichês – tão disponíveis e fáceis – para falar de São Paulo, mas envereda pelo tema de forma corriqueira, o que torna a leitura agradável e divertida.

Thadeu acerta no título ao intrigar o leitor com a polissemia da palavra marginal, às vezes adjetivo; às vezes, substantivo. Deixa a dúvida, antes da leitura, se falará de um lado da cidade mais underground ou das vias expressas que cicatrizam a cidade. E quando fala da marginal Pinheiros, vai fundo, norteia o leitor de sua posição como motorista e observador.

Alguns trechos revelam ironias bem originais do autor, como em “polícia gosta de parar aviões quando estão fora dos aeroportos” quando se refere ao carro lotado e rebaixado; ou em “moleques dirigindo carros velhos e carros novos nunca vistos dirigidos por gente velha” citando motoristas vizinhos na Marginal Pinheiros. O sorriso do leitor aparece espontaneamente nesses trechos. Pequeno aperitivo da leitura, mas fundamental à sua digestão e coesão.

O que incomoda é o final do texto. Ele perde o ritmo. Trazia aquela observação aguda, mas divertida e resignada, para se tornar dissertativa e rebelde. Muda o tempo da narrativa para segunda pessoa com verbos que incluem leitores, passageiros do trânsito e o próprio autor. A falta de esperança dava a tônica do texto, trocada no final por um pequeno lamento. Se esse lamento tivesse um pouquinho mais de humor, talvez mantivesse o ritmo.

Cidade catótica

Publicado 02/03/08 por Marco Aurélio Gois dos Santos
Categorias: Textos

Por Marco Aurélio Gois dos Santos

Há quem diga que, por conter tantas culturas e identidades diferentes, São Paulo é uma cidade sem identidade. Pura bobagem. Tudo bem, é verdade que não há comida típica paulistana, nem música popular paulistana, nem folclore paulistano. Mas há — e isso ninguém pode nos tirar — um comportamento profundamente arraigado entre os habitantes de São Paulo, e que pode ser considerado a grande característica comum: o ato de tirar catota no trânsito.

nose_picking5.jpgSe você que lê estas linhas está agora ao volante, solicito encarecidamente que PARE DE LER e preste atenção na porra do trânsito. Caso contrário, peço que dê uma olhada para o lado da próxima vez que parar num semáforo. Arrisco dizer que há sete ou oito chances em dez de que seu vizinho de trânsito esteja com pelo menos a falangeta dentro de pelo menos uma narina. Uma colega gaúcha diz que os catoteiros foram seu maior choque ao trocar as ruas de Porto Alegre pelas da terra da garoa. Certa feita, disse a um sujeito de Nova Iorque que o povo de São Paulo era adepto do nose picking. Ele disse que isso era louvável. Só depois, quando o cara já tinha voltado para a civilização, me dei conta de que, graças à minha pronúncia maravilhosa, ele tinha entendido no speaking. Deve estar até hoje contando aos amigos sobre a admirável introspecção dos paulistanos.

Muito bem, alguns podem dizer , torcendo (ou cutucando) o nariz, que a sondagem dígito-nasal não é privilégio exclusivo dos paulistanos. É verdade. Mas pessoas de outras plagas são mais discretas: retiram-se da vista alheia para praticar o ato, ou pelo menos o fazem disfarçadamente, aproveitam aquela coçadinha no nariz e tal. Os motoristas paulistanos, por sua vez, catoteiam com empáfia, quase com orgulho. Deve ter alguma coisa a ver com a poluição, é verdade. Imagine a quantidade de fuligem que nos entra pelas narinas após uma hora e meia de tráfego intenso na Marginal Tietê. Aquela sujeira toda irrita as vias respiratórias, se mistura com o muco nasal e… Bom, acho que não preciso explicar em detalhes.

Não podemos, no entanto, botar a culpa somente no ar imundo da cidade. Eu diria que a causa maior é a relação que o paulistano tem com o carro. Para nós, o automóvel não é só um meio de transporte: é extensão de nosso lar, é nosso domínio, nosso habitat, nosso reino sobre quatro rodas. Sentimo-nos totalmente à vontade dentro de nossas máquinas: cantamos, batucamos no painel, falamos sozinhos, soltamos gases e — claro — catamos catota. O interior do carro nos dá a ilusão de privacidade, e é muito fácil esquecer que estamos cercados por vidro translúcido.

E assim, à vontade, vão os paulistanos catoteando pela vida. Uns são recicladores conscientes, e tratam de consumir imediatamente tudo o que tiram do nariz. Outros têm vocação para decorador, e distribuem suas catotas em belos padrões pelo painel do carro, no volante, no teto. Há aqueles que são tímidos e escondem seu produto sob o banco (se as lojas de carros usados dessem 10 reais de desconto por catota encontrada sob o banco do motorista, estariam todas falidas). Existem também aqueles desapegados, que se desfazem de suas bolinhas com um jeitoso piparote. E nem olham para trás.

Já prevejo a reação de alguns cidadãos indignados da metrópole, prontos a me atirarem pedras (ou catotas). Antes que o façam, porém, peço que reflitam por um momento. Finalmente nós, os paulistanos (que somos baianos, paranaenses, japoneses, portugueses, italianos, lituanos, coreanos, judeus, acreanos, libaneses), temos algo que nos une. Isso há de valer alguma coisa, não?
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